segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Brexit redefine a geopolítica mundial. 27 anos após a queda do muro de Berlim.

Favorável ao Brexit, a raínha Isabel II vai poder reorientar o seu país em direcção ao yuan.

Enquanto a imprensa internacional procura meios para relançar a construção europeia sempre sem a Rússia, e agora sem o Reino Unido, Thierry Meyssan considera que nada mais poderá evitar o afundamento do sistema. Entretanto, sublinha ele, aquilo que está em jogo não é a União Europeia, em si mesma, mas o conjunto das instituições que permitem a dominação dos Estados Unidos no mundo e a própria integridade dos Estados Unidos.
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Ninguém parece compreender as consequências da decisão britânica de sair da União Europeia. Os comentadores, que interpretam a política politiqueira e perderam desde há muito tempo a noção dos jogos políticos internacionais, focaram-se nos elementos de uma campanha absurda: de um lado os adversários da imigração sem controle, e do outro, os pais do «homem do saco» assustando o Reino Unido com as piores desgraças.
Ora, as motivações desta decisão não tem nenhuma conexão com estes temas. A diferença entre a realidade e o discurso político-midiático ilustra a doença da qual sofrem as elites ocidentais: a sua incompetência.
Enquanto a cortina se abre diante dos nossos olhos, as nossas elites não conseguem compreender a situação em que o Partido comunista da União Soviética estava ao não encarar as consequências da queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989: a dissolução da URSS em Dezembro de 1991, depois a do Conselho de Assistência Econômica Mútua (Comecon) e do Pacto de Varsóvia seis meses mais tarde, depois, ainda as tentativas de desmantelamento da Rússia, ela mesma, em que quase perdia a Tchechênia.
Num futuro muito próximo, assistiremos identicamente à dissolução da União Europeia, depois da OTAN, e, se eles não tiverem cuidado, ao desmantelamento dos Estados Unidos.
Quais os interesses por trás do Brexit ?
Contrariamente às bravatas de Nigel Farage, o UKIP não está na origem do referendo que ele acaba de ganhar. Esta decisão foi imposta a David Cameron por membros do Partido Conservador.
Para eles, a política de Londres deve ser uma adaptação pragmática às evoluções do mundo. Esta «nação de merceeiros», assim a qualificava Napoleão, constata que os Estados Unidos não são mais nem a primeira economia mundial, nem a primeira potência militar. Não têm portanto, mais, razão nenhuma para serem os parceiros privilegiados.
Da mesma maneira que Margaret Thatcher não hesitara em destruir a indústria britânica para transformar o seu país num centro financeiro mundial; da mesma forma estes Conservadores não hesitaram em abrir a via para a independência da Escócia e da Irlanda do Norte e, portanto, à perda do petróleo do mar do Norte, para fazer da City o primeiro centro financeiro off-shore do yuan.
A campanha do Brexit foi largamente apoiada pela Gentry e pelo Palácio de Buckingham que mobilizaram a imprensa popular para apelar ao regresso à independência.
Contrariamente ao que a imprensa europeia propaga a saída dos Britânicos da UE não se fará lentamente, porque a UE vai afundar-se mais rápido que o tempo necessário para as negociações burocráticas da sua saída. Os Estados do Comecon não tiveram que negociar a sua saída, porque o Comecon parou de funcionar uma vez desencadeado o movimento centrífugo. Os Estados-membros da UE que se agarram aos destroços, e persistem em salvar o que resta da UE, vão perder o tempo de adaptação necessário aos novos dados, com o risco de experimentar as dolorosas convulsões dos primeiros anos da nova Rússia: queda vertiginosa do nível de vida e da esperança de vida.
Para as centenas de milhares de funcionários, de eleitos, e de colaboradores europeus que irão, inevitavelmente, perder os seus empregos, e para as elites nacionais que são igualmente dependentes deste sistema, convinha reformar com urgência as instituições para os salvar. Todos consideram, erradamente, que o Brexit abre uma brecha na qual os Eurocépticos se vão infiltrar. Ora, o Brexit não é mais que uma resposta ao declínio dos Estados Unidos.
O Pentágono, que prepara a Cimeira da OTAN em Varsóvia, também não compreendeu que já não estava em posição de impôr aos seus aliados o aumento do orçamento de Defesa, e o apoio às suas aventuras militares. O domínio de Washington sobre o resto do mundo está acabado.
Mudamos de era.

O que é que vai mudar ?

A queda do bloco soviético foi, antes de mais, a morte de uma visão do mundo. Os Soviéticos, e os seus aliados, queriam construir uma sociedade solidária onde se colocava o máximo possível de coisas em comum. Eles acabaram numa burocracia gigantesca e com dirigentes esclerosados.
O Muro de Berlim não foi derrubado pelos anti-comunistas, mas por uma coalizão das Juventudes comunistas e das Igrejas luteranas. Eles pretendiam refundar o ideal comunista descartado da tutela soviética, da polícia política e da burocracia. Foram traídos pelas suas elites, as quais após terem servido os interesses dos Soviéticos se precipitaram, com o mesmo ardor, para servir as elites Norte-americanas. 
Os eleitores do Brexit, os mais empenhados, procuram antes de mais nada recuperar a sua soberania nacional, e fazer pagar aos dirigentes oeste-europeus a arrogância de que fizeram prova ao imporem o Tratado de Lisboa, após a rejeição popular da Constituição Europeia (2004-07). Mas, também eles poderão vir a ficar decepcionados por aquilo que se vai seguir.
O Brexit marca o fim da dominação ideológica dos Estados Unidos, a da democracia de desvalorização das «Quatro liberdades». No seu discurso sobre o estado da União de 1941, o Presidente Roosevelt tinha-as definido como (1) liberdade de palavra e de expressão, (2) a liberdade de cada um honrar a Deus como lhe aprouvesse, (3) a liberdade da necessidade, (4) a liberdade do medo [de uma agressão estrangeira]. Se os Ingleses vão regressar às suas tradições, os Europeus continentais irão reencontrar as questões postas pelas revoluções francesa e russa sobre a legitimidade do poder e subverter as suas instituições, correndo o risco de ver ressurgir o conflito franco-alemão.
O Brexit também marca o fim da dominação econômica-militar dos EUA; não sendo a OTAN e a UE mais que as duas faces de uma única e mesma moeda, mesmo se a construção da Política externa e da Segurança comum levou mais tempo a implementar que a do livre comércio. Recentemente, eu escrevi uma nota sobre esta política face à Síria. Nela, eu examinava todos os documentos internos da UE, quer fossem públicos ou não publicados, para chegar à conclusão que foram redigidos sem nenhum conhecimento da realidade no terreno, mas, antes, a partir de notas do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, ele próprio reproduzindo as instruções do Departamento de Estado dos EUA. Há alguns anos atrás, tive que efetuar a mesma diligência por um outro Estado e eu chegara a uma conclusão semelhante (salvo que que nesse outro caso, o intermediário não fora o governo alemão, mas o francês).

Primeiras consequências no seio da União Europeia.

Atualmente, os sindicatos franceses rejeitam o projeto de lei sobre o Trabalho que foi redigido pelo governo Valls, com base num relatório da União Europeia, sendo este inspirado por instruções do Departamento de Estado dos EUA. Se a mobilização da CGT permitiu aos Franceses descobrir o papel da UE neste assunto, nem sempre eles se têm apercebido da articulação UE-EUA. Eles perceberam que invertendo as normas e colocando os acordos de empresa acima dos acordos de filial, o governo, na realidade, punha em causa a proeminência da Lei sobre o Contrato, mas, eles ignoram a estratégia de Joseph Korbel e dos seus dois filhos, a sua filha natural, a democrata Madeleine Albright, e a sua filha adotiva, a republicana Condoleezza Rice. O professor Korbel assegurava que, para dominar o mundo, bastava que Washington impusesse uma reescrita das relações internacionais em termos jurídicos anglo-saxônicos. Com efeito, ao colocar o Contrato acima da Lei o Direito anglo-saxônico privilegia, no longo prazo, os ricos e os poderosos em relação aos pobres e aos miseráveis.
É provável que os Franceses, os Holandeses, os Dinamarqueses e outros, ainda tentarão separar-se da UE. Para isso, eles terão que enfrentar a sua classe dirigente. Mesmo que a duração deste combate seja imprevisível, o seu resultado não mais levanta qualquer dúvida. Seja como for, no período de turbulência que se anuncia, os trabalhadores franceses dificilmente serão manipuláveis, em contraste com os seus homólogos ingleses, atualmente desorganizados.

Primeiras consequências para o Reino Unido

O Primeiro-Ministro David Cameron, desculpou-se com as férias de verão para diferir a sua demissão para Outubro. O seu sucessor, em princípio, Boris Johnson, pode pois preparar a mudança de modo a aplicá-la instantaneamente após a sua chegada a Downing Street. O Reino Unido não esperará pela saída definitiva da UE para conduzir a sua própria política. Começando por se dissociar das sanções tomadas em relação à Rússia e à Síria.
Contrariamente aquilo que escreveu a imprensa europeia, a City de Londres não é diretamente envolvida no Brexit. Tendo em conta o seu estatuto particular de Estado independente colocado sob a autoridade da Coroa, ela jamais fez parte da União Europeia. Claro, ela não poderá, mais, abrigar as sedes sociais de certas companhias que se irão transferir para a União, mas, por outro lado, ela poderá usar a soberania de Londres para desenvolver o mercado do yuan. Já em Abril, ela obteve os privilégios necessários, assinando para tal um acordo com o Banco Central da China. Além disso, deverá desenvolver as suas atividades como um paraíso fiscal para os Europeus.
Mesmo que o Brexit vá temporariamente desorganizar a economia britânica, à espera de novas regras, é provável que o Reino Unido –-ou, pelo menos, a Inglaterra--- se reorganize rapidamente, para seu total benefício. Resta saber se os mentores deste terramoto terão a sabedoria de fazer o seu povo beneficiar disso: o Brexit é um regresso à soberania nacional, mas não garante a soberania do povo.
O panorama internacional pode evoluir de formas muito diferentes, segundo as reações que se vão seguir. Mesmo que isso corra mal para alguns povos, é sempre preferível ligar-se à realidade, como o fazem os Britânicos, mais do que persistir num sonho, até que ele se desfaça.
texto de Thierry Meyssan.
Tradução - Alva

Matopiba é morte, queremos a vida, por Egon Heck.



Egon Heck – CIMI.
Um forte vento se uniu às vozes, aos gritos e clamores contra o projeto de morte denominado Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA) Matopiba no segundo dia da III Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins. A capital tocantinense Palmas está sendo o palco desse histórico evento onde os povos originários se unem aos quilombolas, camponeses, outras comunidades tradicionais e acadêmicos para, juntos, traçarem estratégias para o enfrentamento desse modelo de desenvolvimento extremamente predador, destruidor, criminoso e genocida que está sendo implantado com euforia e aval do governo e apoiado com recursos públicos.
“Nós não vamos deixar o Matopiba passar”, exclamou a liderança Krahô, Gercília. “O Rio Vermelho está morrendo. Eu protejo o rio sagrado. Não vamos deixar roubarem nossas terras e matarem os rios e as matas. Falo do que está dentro do meu coração, não sei falar bonito em português, mas quero dizer a vocês que o Matopiba não vai vingar”, garantiu ela.
Clique aqui para acessar o folder sobre o Matopiba produzido para a III Assembleia dos Povos Indígenas de Goiás e Tocantins.
Em sua fala, Antônio Apinajé destacou a gravidade do momento de sérias ameaças à vida e ao futuro das comunidades e aldeias “A gente fica atordoado, perturbado com esses projetos como o Matopiba. Estamos construindo união com os quilombolas e camponeses na defesa da Mãe Terra. Precisamos lutar juntos, fortalecer a cultura, nossas raízes, para ter mais força no enfrentamento com esses poderosos”.
O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto, chamou atenção para a agressividade com que os setores anti-indígenas estão desconstruindo direitos e conquistas dos povos indígenas nas últimas décadas. “É preciso dar continuidade à mobilização permanente dos povos indígenas, ampliando suas alianças com as populações do campo”.
Rituais de vida e resistência
Ivo Poletto, assessor do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social (FMCJS), que há décadas vem acompanhando e denunciando a destruição do Cerrado, lembrou que, na verdade, o Matopiba é a reedição de projetos como o Prodecer, implantado pelo ditador Geisel, em 1978, com a entrega de grande parte do Cerrado a multinacionais japonesas. Agora, a mesma lógica se repete. “É uma loucura o que está sendo feito”, enfatizou, conclamando os indígenas a serem: “profetas da Vida… Tenham amor e respeito sagrado pela Terra. O Cerrado também diz um ‘não’ desesperado a esse desastre total. Dêem a vossa mensagem do Bem Viver”.
Para o procurador da 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) Felício Pontes “o Matopiba é o projeto final de destruição do Cerrado”. Ele destacou que a voracidade com que o atual modelo capitalista suga os recursos naturais está baseada em quatro pilares: madeira, pecuária, monocultura e mineração”. Esse modelo caminha celeremente para o esgotamento, deixando em seu caminho rastros de morte e destruição. Alertou para as gravíssimas consequências de semelhantes projetos, não apenas para o Cerrado, com fortes impactos sobre praticamente todos os biomas, em especial a Amazônia, que tem os berços de seus mananciais de água no Cerrado.
Felício destacou o fato de ser uma obrigação constitucional do Ministério Público a defesa das populações atingidas por esses projetos e sugeriu ações e debates que dêem visibilidade a essa grave situação. Nesse sentido, ele propôs a realização de uma audiência pública sobre o Matopiba, a ser realizada em Brasília no segundo semestre deste ano. Apresentando dados e números, Felício explicitou como os governos vêm destinando recursos públicos para promover a destruição. “É contra esses monstros que temos que lutar”, concluiu.
Já o procurador Álvaro Manzano, de Palmas, afirmou que a continuidade do modelo desenvolvimentista gera grave desagregação social nas populações do Cerrado.
Alfredo Wagner Berno de Almeida, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAm), mostrou o descalabro do momento atual, onde sequer existe uma definição clara sobre o “lugar institucional” dentro do Estado brasileiro para resolver a questão da demarcação das terras indígenas e titulação dos territórios quilombolas. E neste quadro caótico de desconstrução de direitos, o agronegócio avança incontrolavelmente.
A partir de dados, ele evidenciou a importância dos espaços das terras coletivas, demarcadas ou reivindicadas, e que poderiam configurar uma esperançosa garantia de vida das populações e da natureza. No entanto, infelizmente, apesar das garantias legais e constitucionais, elas não estão seguras diante da voracidade do atual modelo de desenvolvimento, que pretende explorar os bens comuns presentes nos territórios tradicionais. Todos os direitos estão ameaçados.
“Estamos numa encruzilhada. Temos que admitir nossas fraquezas, contradições e esfacelamentos. É preciso unir as forças e escolher um novo caminho. Estivemos imobilizados por muito tempo. É hora de fazer os enfrentamentos locais, somar as resistências locais e ir somando forças”, considerou Wagner.
Luta comum
Os debates realizados nestes dois dias de Assembleia explicitaram que é urgente avançar na unificação das lutas. É preciso enfrentar as estratégias do agronegócio e de suas corporações genocidas sem medo.
Na tarde de anteontem (22), os mais de seiscentos indígenas dos dez povos presentes no evento, juntamente com diversos representantes dos quilombolas, sem terra e de comunidades tradicionais, como as quebradeiras de coco, além de pesquisadores e integrantes de organizações da sociedade civil, realizaram uma caminhada pelo centro de Palmas.
Durante o trajeto, explicaram os graves impactos que o Matopiba irá causar a todos e conclamaram a população para se unir aos lutadores pela Vida para “defender nossos rios, nossa água, o Cerrado e a nossa Casa Comum”.
Cerca de 500 cruzes de madeira, simbolizando o longo processo de extermínio e destruição do capitalismo já realizado e denunciando os severos impactos futuros deste de aprofundamento deste sistema, foram fincadas em uma das praças centrais da cidade. Um folheto distribuído à população trazia relevantes informações sobre as graves consequências da destruição da vida pelo atual modelo de desenvolvimento:
“Vocês estão percebendo que o Rio Tocantins está morrendo? Ele está cada dia mais estreito, e está pedindo socorro. É pelo desmatamento que, em média, desaparecem dez pequenos rios no Cerrado, por ano… Territórios livres, florestas sagradas, fontes de águas puras! Vamos somar, unir forças na defesa da nossa Mãe Terra. Se a Casa é Comum, a luta também é Comum”.
O final da manifestação foi na Assembleia Legislativa do estado, onde foi entregue um documento com vários questionamentos sobre projetos aprovados pelos deputados:
“Queremos também dizer o nosso ‘NÃO’ ao projeto Matopiba que, com os correntões da morte, ameaça destruir o Cerrado, no qual apenas restam menos de 30% da vegetação nativa. Caso esse projeto seja implementado, em poucos anos, não restará mais nada do Cerrado. Estaremos sujeitos a uma catastrófica falta de água. E a água que restar estará cada vez mais contaminada e escassa, pois as nascentes secarão e nossos rios serão mortos.”
Foto: Egon Heck
Cimi GOTO
Palmas, 23 de junho de 2016.

Por que o Reino Unido deu bye-bye à União Européia.


A British flag which was washed away by heavy rains the day before lies on the street in London, Britain, June 24, 2016 after Britain voted to leave the European Union in the EU BREXIT referendum.

24/6/2016, Pepe Escobar, SputnikNews

Entreouvido na Vila Vudu:

Para entender a situação presente e imediatamente futura:

“O primeiro-ministro David Cameron, que liderou a campanha derrotada para convencer os votantes a permanecerem na UE, disse hoje publicamente que a saída não acontecerá imediatamente, e que pretende renunciar dentro de três meses e deixar para o sucessor a decisão de “disparar o artigo 50″ do tratado que criou a UE, Tratado de Lisboa, e que determina que qualquer estado-membro tem dois anos, depois de declarado o desejo de desligar-se, para negociar os termos da saída” (“British Exit From EU Not Inevitable, Despite Referendum” [Saída dos britânicos da UE não é inevitável, apesar do plebiscito], Robert Mackey, The Intercept, 24/6/2016. Epígrafe aqui acrescentada pelos tradutores).
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Então, o que começou como chantagem feita por David Cameron e válvula de escape para o descontentamento dos britânicos, a ser usado como alavanca para barganhar com Bruxelas e arrancar mais alguns poucos favores, entrou em metástase e se converteu em espantoso terremoto político que tem tudo a ver com a des-integração da União Europeia.

irrepreensivelmente medíocre Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, fazendo pose de “historiador”, alertou que Brexit “pode ser o começo da destruição não só da União Europeia, mas da civilização política ocidental na totalidade.”

Bobagem. Brexit provou que é a imigração, estúpido. E mais uma vez é a economia, estúpido (embora o establishment britânico neoliberal jamais tenha dado atenção). Mas pode-se apostar dinheiro sério em que o sistema da União Europeia em Bruxelas nada aprenderá dessa terapia de choque – e não se autorreformará. Haverá racionalizações de que afinal de contas o Reino Unido classicamente sempre reclamou demais, sempre se opunha a tudo e vivia a exigir privilégios extras nas negociações com a UE. Quanto à “civilização política ocidental”, o que acabará – e, sim, é grande evento – é o relacionamento transatlântico especial entre EUA e UE com a Grã-Bretanha lá enfiada como Cavalo de Troia dos norte-americanos.

Assim sendo, é claro que tudo vai monumentalmente além de simples disputa entre um Cameron inapelavelmente incapaz de cálculo estratégico que preste, que agora caiu sobre a própria espada, e o temerariamente ambicioso bobo da corte Boris Johnson – um Donald Trump com melhores vocabulário e hábitos discursivos.

Como seria de prever, a Escócia votou “Fica” [ing.Remain] e pode fazer outro referendo – e separar-se do Reino Unido – antes de deixar-se expulsar pelos votos dos trabalhadores ingleses brancos. O Sinn Fein já quer ter voto na Irlanda unida. Dinamarca, Holanda e até Polônia e Hungria quererão status especial dentro da União Europeia, porque senão… Por toda a Europa a direita movimenta-se como estouro da boiada. Marine Le Pen quer um referendo francês. Geert Wilders quer um referendo holandês. Quanto à vasta maioria dos britânicos com menos de 25 anos, que votaram “Fica”, talvez considerem viagem só de ida, não para o continente, mas ainda mais adiante.

Mostre-me o povo - O historiador anglo-francês Robert Tombs observou que, quando europeus falam sobre história, referem-se ao Império Romano, à Renascença e ao Século das Luzes. Passam pela Grã-Bretanha como se nem existisse, de certo modo. Em troca, há britânicos que ainda veem a Europa como entidade da qual se deve guardar distância segura.

Acrescente-se ao problema que não se trata de uma “Europa de povos”. Bruxelas absolutamente detesta a opinião pública europeia, e o sistema mostra resistência férrea a qualquer reforma. Nesse projeto atual de União Europeia, que visa afinal a ser uma federação modelada segundo os EUA, a Grã-Bretanha não se encaixa. Pode-se dizer que aí está uma das razões chaves por trás do Brexit – que por sua vez já desuniu o reino e pode eventualmente reduzi-lo a pequeno entreposto comercial na beirada da Europa.

Sem “povo europeu”, o sistema de Bruxelas só conseguiu articular-se como uma burocracia kafkiana, não eleita. Além do mais, os representantes dessa Europa sem povo em Bruxelas realmente defendem o que consideram que seja o interesse nacional deles, não o interesse ‘europeu’.

Mas Brexit não significa que a Grã-Bretanha ficará livre do que dite a Comissão Europeia (CE). A CE sim, propõe a política, mas nada pode seguir adiante sem decisões do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros, que reúnem representantes de todos os governos eleitos dos estados membros.

Pode-se argumentar que um “Fica”, no melhor dos casos, teria levado a algum exame de consciência em Bruxelas, e a um sinal de alerta, que talvez se traduzisse em política monetária mais flexível; em impulso para conter os imigrantes atrás das fronteiras africanas; e mais abertura em direção à Rússia. O Reino Unido permaneceria numa Europa que daria mais peso a países fora da eurozona, e a Alemanha concentrar-se-ia nas 19 nações membros da eurozona.

O “Fica” teria levado a Grã-Bretanha a aumentar o próprio peso político econômico em Bruxelas, e a Alemanha se abriria mais para algum crescimento moderado (em vez da ‘austeridade’). Mesmo que sempre se pudesse argumentar que a Grã-Bretanha rejeitaria a noção de um futuro ministro do Tesouro da eurozona, de um FBI europeu e de um ministro europeu do Interior – de fato, toda a noção de uma completa união monetária e econômica.

Já são águas passadas. Além do mais, não se pode esquecer o poderoso drama do mercado único.

A Grã-Bretanha não perderá apenas o livre acesso ao mercado único europeu de 500 milhões de pessoas; terá de renegociar todos e cada um dos tratados comerciais com o resto do mundo, uma vez que todos eles foram negociados pela/na União Europeia. O ministro da Economia da França e aspirante à presidência Emmanuel Macron já alertou que “se a Grã-Bretanha quer um tratado de acesso comercial ao mercado europeu, os britânicos têm de contribuir para o orçamento europeu, como fazem noruegueses e suíços. Se London não concorda com isso, nesse caso tem de ser saída total.” A Grã-Bretanha ficará excluída do mercado único – para o qual vão mais de 50% de suas exportações –, a menos que pague quase tudo que paga atualmente. Além disso e sobretudo, Londres terá ainda assim de aceitar a liberdade de movimentos, tipo imigração europeia.

City ganhou um olho roxo - Brexit derrotou conjunto espantoso do que Zygmunt Bauman definiu como as elites globais da modernidade líquida: a City de Londres, o FMI, Wall Street, o Fed, o Banco Central Europeu [ing. European Central Bank (ECB)], grandes fundos dehedge/investimentos, todo o sistema interconectado do banking global.

Mais de 75% da City de Londres, como era de prever, votou “Fica”. Espantosos $2,7 trilhões são negociados todos os dias na “milha quadrada”, que emprega quase 400 mil pessoas. E não é só a milha quadrada, porque a City agora inclui também Canary Wharf (quartel-general de vários grandes bancos) e Mayfair (local privilegiado de convivência dos fundos hedge).

City de Londres – indiscutível capital financeira da Europa – também administra espantoso $1,65 trilhão de fundos de clientes, riqueza, literalmente, de todos os cantos do planeta. Em Treasure Islands, Nicholas Shaxson diz que “empresas de serviços financeiros voaram em bandos para Londres, porque Londres as deixa fazer o que não podem fazer em casa.”

Desregulação sem limites combinada a influência sem igual sobre o sistema econômico global é mistura tóxica. Nessa direção, Brexit pode também ser interpretada como um voto contra a corrupção que invadiu a mais lucrativa indústria da Inglaterra.

As coisas mudarão. Dramaticamente. Não mais haverá “passporting” [“Passporting significa que um banco britânico pode prover serviços em toda a UE, a partir de sua sede na Grã-Bretanha. Importante, também significa que um banco suíço ou norte-americano pode fazer a mesma coisa de uma filial ou subsidiária estabelecida na Grã-Bretanha, pela qual os bancos podem vender produtos a todos os 28 membros da UE, com acesso, assim, a uma economia integrada de $19 trilhões” (de Dlapiper, NTs)]. Basta ter quartel-general em Londres e alguns miniescritórios satélites. Passporting entrará em fase de negociação feroz, assim como o que acontece nos pregões denominados em euro, de Londres.

Acompanhei o Brexit aqui de Hong Kong – a qual, há 19 anos, teve seu próprio Brexit, quando realmente deu bye bye ao Império Britânico para ligar-se à China. Pequim está preocupada, temendo que Brexit venha a se traduzir em fuga de capitais, “pressões de depreciação” sobre o yuan, e perturbações sobre a gestão da política monetária do Banco da China.

Brexit pode até afetar seriamente as relações China-UE, porque Pequim, em tese, pode vir a perder influência em Bruxelas, sem o apoio britânico. É crucial não esquecer que a Grã-Bretanha apoiou um pacto de investimento entre China e UE e um estudo conjunto da viabilidade de um acordo de livre comércio China-UE.

He Weiwen, codiretor do Centro de Estudos China-EUAUE, sob a Associação Chinesa de Comércio Internacional, parte do Ministério do Comércio, disse claramente: “A União Europeia provavelmente adotará abordagem mais protecionista nos negócios com a China. 

Quanto a empresas chinesas que instalaram quartéis-generais ou filiais na Grã-Bretanha, é possível que já não gozem de acesso sem tarifas ao marcado europeu em geral, depois que a Grã-Bretanha deixar a União Europeia.”

Isso se aplica, por exemplo, às grandes chinesas de alta tecnologia, como Huawei e Tencent. Entre 2000 e 2015, a Grã-Bretanha era principal destino de investimento chinês direto, e o segundo maior parceiro comercial da China dentro da UE.

Mas também pode acabar por reverter em ganha-ganha para a China. Alemanha, França e Luxemburgo – todos competindo com Londres pelos sumarentos negócios offshore em yuan – aumentarão seu papel. Chen Long, economista do Banco de Dongguan, está confiante de que “o continente europeu, especialmente países da Europa Central e Oriental, se envolverão mais ativamente nos programas chineses de “Um Cinturão, Uma Estrada” [também chamados “Novas Rotas da Seda” (NTs)].

A Grã-Bretanha, assim, viraria a nova Noruega? É possível. A Noruega deu-se muito bem depois de rejeitar a inclusão na União Europeia, em referendo de 1995. Será estrada longa e sinuosa, antes de o Artigo 50 ser invocado e lançar-se uma negociação de dois anos entre Reino Unido e União Europeia sobre território ainda não mapeado. Alistair Darling, ex-chanceler britânico do Exchequer, resumiu tudo: “Ninguém tem ideia do que signifique ‘Fora’.”

Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como:  Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.


domingo, 26 de junho de 2016

Conheça a Lei 13.300 de 2016 que disciplina o Mandado de Injunção.

Disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências.
O VICE - PRESIDENTE   DA   REPÚBLICA, no  exercício  do  cargo  de  PRESIDENTE   DA   REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o  Esta Lei disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo, nos termos do inciso LXXI do art. 5o da Constituição Federal.
Art. 2o  Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta total ou parcial de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Parágrafo único. Considera-se parcial a regulamentação quando forem insuficientes as normas editadas pelo órgão legislador competente.
Art. 3o  São legitimados para o mandado de injunção, como impetrantes, as pessoas naturais ou jurídicas que se afirmam titulares dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas referidos no art. 2o e, como impetrado, o Poder, o órgão ou a autoridade com atribuição para editar a norma regulamentadora.
Art. 4o  A petição inicial deverá preencher os requisitos estabelecidos pela lei processual e indicará, além do órgão impetrado, a pessoa jurídica que ele integra ou aquela a que está vinculado.
§ 1o Quando não for transmitida por meio eletrônico, a petição inicial e os documentos que a instruem serão acompanhados de tantas vias quantos forem os impetrados.
§ 2o  Quando o documento necessário à prova do alegado encontrar-se em repartição ou estabelecimento público, em poder de autoridade ou de terceiro, havendo recusa em fornecê-lo por certidão, no original, ou em cópia autêntica, será ordenada, a pedido do impetrante, a exibição do documento no prazo de 10 (dez) dias, devendo, nesse caso, ser juntada cópia à segunda via da petição.
§ 3o  Se a recusa em fornecer o documento for do impetrado, a ordem será feita no próprio instrumento da notificação.
Art.  5o Recebida a petição inicial, será ordenada:
I - a notificação do impetrado sobre o conteúdo da petição inicial, devendo-lhe ser enviada a segunda via apresentada com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 10 (dez) dias, preste informações;
II - a ciência do ajuizamento da ação ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, devendo-lhe ser enviada cópia da petição inicial, para que, querendo, ingresse no feito.
Art. 6o  A petição inicial será desde logo indeferida quando a impetração for manifestamente incabível ou manifestamente improcedente.
Parágrafo único. Da decisão de relator que indeferir a petição inicial, caberá agravo, em 5 (cinco) dias, para o órgão colegiado competente para o julgamento da impetração.
Art. 7o  Findo o prazo para apresentação das informações, será ouvido o Ministério Público, que opinará em 10 (dez) dias, após o que, com ou sem parecer, os autos serão conclusos para decisão.
Art. 8o  Reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para:
I - determinar prazo razoável para que o impetrado promova a edição da norma regulamentadora;
II - estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los, caso não seja suprida a mora legislativa no prazo determinado.
Parágrafo único. Será dispensada a determinação a que se refere o inciso I do caput quando comprovado que o impetrado deixou de atender, em mandado de injunção anterior, ao prazo estabelecido para a edição da norma.
Art. 9o  A decisão terá eficácia subjetiva limitada às partes e produzirá efeitos até o advento da norma regulamentadora.
§ 1o  Poderá ser conferida eficácia ultra partes ou erga omnes à decisão, quando isso for inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa objeto da impetração.
§ 2o  Transitada em julgado a decisão, seus efeitos poderão ser estendidos aos casos análogos por decisão monocrática do relator.
§ 3o  O indeferimento do pedido por insuficiência de prova não impede a renovação da impetração fundada em outros elementos probatórios.
Art. 10. Sem prejuízo dos efeitos já produzidos, a decisão poderá ser revista, a pedido de qualquer interessado, quando sobrevierem relevantes modificações das circunstâncias de fato ou de direito.
Parágrafo único. A ação de revisão observará, no que couber, o procedimento estabelecido nesta Lei.
Art. 11.  A norma regulamentadora superveniente produzirá efeitos ex nunc em relação aos beneficiados por decisão transitada em julgado, salvo se a aplicação da norma editada lhes for mais favorável.
Parágrafo único.  Estará prejudicada a impetração se a norma regulamentadora for editada antes da decisão, caso em que o processo será extinto sem resolução de mérito.
Art. 12.  O mandado de injunção coletivo pode ser promovido:
I - pelo Ministério Público, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático ou dos interesses sociais ou individuais indisponíveis;
II - por partido político com representação no Congresso Nacional, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas de seus integrantes ou relacionados com a finalidade partidária;
III - por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos 1 (um) ano, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas em favor da totalidade ou de parte de seus membros ou associados, na forma de seus estatutos e desde que pertinentes a suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial;
IV - pela Defensoria Pública, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5o da Constituição Federal.
Parágrafo único. Os direitos, as liberdades e as prerrogativas protegidos por mandado de injunção coletivo são os pertencentes, indistintamente, a uma coletividade indeterminada de pessoas ou determinada por grupo, classe ou categoria.
Art. 13. No mandado de injunção coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente às pessoas integrantes da coletividade, do grupo, da classe ou da categoria substituídos pelo impetrante, sem prejuízo do disposto nos §§ 1o e 2o do art. 9o.
Parágrafo único.  O mandado de injunção coletivo não induz litispendência em relação aos individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante que não requerer a desistência da demanda individual no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração coletiva.
Art. 14.  Aplicam-se subsidiariamente ao mandado de injunção as normas do mandado de segurança, disciplinado pela Lei no 12.016, de 7 de agosto de 2009, e do Código de Processo Civil, instituído pela Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e pela Lei no 13.105, de 16 de março de 2015, observado o disposto em seus arts. 1.045 e 1.046.
Art. 15.  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 23 de junho de 2016; 195o da Independência e 128o da República.
MICHEL TEMER
Alexandre de Moraes
Fábio Medina Osório

Este texto não substitui o publicado no DOU de 24.6.2016
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Africa - Soldados nigerianos libertam 5 mil reféns do Boko Haram.

Foto - Bandeira do Boko Haram apreendida pelo Exercito Nigeriano.

Da Agência Sputnik Brasil.

O Exército nigeriano realizou hoje (26) uma série de operações no estado de Borno e libertou cerca de cinco mil pessoas mantidas reféns pelo grupo Boko Haram, informou um porta-voz do Exército.


As chamadas operações de limpeza foram conduzidas em dezenas de vilas ocupadas pelo grupo islâmico. Pelo menos dez mil militantes foram mortos. O Exército perdeu um soldado e outros dois militares ficaram feridos.

O Boko Haram mantém atividades no Nordeste da Nigéria desde 2009. No ano passado, o grupo expandiu seus ataques para Níger, Camarões e Chade. Em março de 2015, o Boko Haram afirmou sua aliança ao Daesh.


sábado, 25 de junho de 2016

Crise nacional e ausência de políticas públicas tiram 215 milhões de passageiros por ano do transporte público


Ônibus de São Luís.


















Nos últimos tempos, o sistema de transporte coletivo urbano tem amargado quedas bruscas na demanda de passageiros em todas as capitais brasileiras. De acordo com dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), entre 2014 e 2015, houve redução de 687 mil usuários por dia, enquanto no período anterior (2013-2014), as empresas em todo o país registraram 300 mil passageiros a menos diariamente. São 215 milhões de passageiros transportados a menos por ano e R$ 680 milhões deixados de arrecadar.
Para o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, a diferença assusta. “O que estamos vivendo é um fenômeno. Em nosso setor, nem sempre que há dificuldade econômica ocorrem perdas. Ao contrário, costumamos ter até ganhos na demanda, já que algumas pessoas, em geral, migram do carro para o ônibus. Mas, dessa vez, o nível de atividade econômica caiu muito, com inflação altíssima e desemprego histórico. Esses fatores, somados aos problemas da mobilidade urbana, explicam essa queda”, destaca.
Além da crise econômica e política que abateu o país e diminuiu a produtividade, outras questões são apontadas por especialistas e profissionais da área como agravantes. Entre elas, a falta de subsídios para custeio da operação e de recursos para investimentos em infraestrutura, o que tem deixado muitas empresas em dificuldades financeiras, gerando não apenas insatisfação popular, mas também instabilidade nos negócios – com paralisações de funcionários, demissões, entraves judiciais e, em alguns casos mais graves, fechamento de portas.
"Faltam políticas públicas que valorizem o transporte público. A única forma de transformar a crise em oportunidade é olhar com mais atenção para o setor e pensar em um fundo nacional. Atualmente, todo o custo da operação é repassado ao preço da tarifa e isso tem provocado reações da sociedade, com manifestações de movimentos sociais e até ações públicas na Justiça. Acuados com essa lógica, prefeitos não fazem os reajustes necessários e as empresas não conseguem reagir. Temos de sair desse ciclo”, ressalta Cunha.
Foto - Ônibus São Luís.
Sistema nacional em colapso - As perspectivas nada animadoras da economia – com previsões de reação apenas a partir de 2018 – preocupam empresários em todos os cantos do país. De acordo com levantamento realizado pela NTU por meio de comparativos entre 2014 e 2015, as capitais que tiveram quedas mais expressivas na demanda de passageiros foram, respectivamente, Curitiba (-8%) e Goiânia (-7,9%).
Com um total de 32 empresas de transporte na capital e região metropolitana e cerca de 17 mil empregos diretos, Curitiba (PR) vive um cenário de dificuldades financeiras em todas as operadoras. A falta de subsídios estaduais e municipais, as gratuidades nas passagens para parcelas da população – como idosos e crianças – e os reajustes tarifários abaixo do necessário são algumas queixas. “Os custos são maiores que a receita, o que causa desequilíbrio nas empresas e, consequentemente, dificuldade em manter linhas e aumentar a qualidade para o cidadão”, explica o presidente do Sindicato das Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Setransp), Maurício Gulin.
Não bastassem os sacrifícios para manter a operação, as empresas esbarram, ainda, na falta de recursos para investir em projetos considerados fundamentais para a melhoria do transporte público. “Curitiba é modelo no que diz respeito ao sistema de BRT [Transporte Rápido por Ônibus], por exemplo, mas é preciso investir sempre mais”, afirma Gulin. “Os empresários acabam absorvendo os impactos do custeio e não conseguem implantar melhorias para atrair o passageiro”, acrescenta o vice-presidente da Setransp, Lessandro Zen.
Mas as reclamações ultrapassam o campo financeiro. A falta de competitividade do transporte público em relação ao particular também figura entre os obstáculos, na avaliação do presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de Goiânia, Décio Caetano: “Até pouco tempo atrás, a economia estava bem ativa. Com as boas condições do crédito, as pessoas estavam deixando o ônibus e migrando para o carro. Com a crise, veio o desemprego e mais pessoas deixaram de usar o transporte público. No entanto, mesmo com o preço alto da gasolina, andar de carro ainda é considerado mais vantajoso, ao menos do ponto de vista financeiro”.
Formado por cinco empresas, 6 mil funcionários e 1,5 mil ônibus, o sistema de transporte da capital goiana passou por um reajuste tarifário de 12% - que não resolveu, entretanto, a situação financeira delicada que atinge todas as operadoras. “Não adianta, é preciso investir no sistema de transporte público para atrair mais passageiros. E está claro, pelas manifestações populares de 2013, que a população está no limite quanto ao preço da tarifa. Há um ciclo vicioso que não será resolvido apenas com a passagem”, sustenta Décio.
Situação ainda pior enfrenta o Rio de Janeiro. Com um sistema robusto composto atualmente por quatro consórcios, formado por 39 empresas, e 110 mil empregos diretos, o estado assistiu o fechamento de cinco empresas e demissão de dois mil profissionais de abril de 2015 para cá. Além dos já citados problemas da crise, que piorou, ainda, as condições de financiamento para novos projetos, o Rio enfrenta problemas gerados por questões que, à primeira vista, representam apenas desenvolvimento.
“As obras das Olimpíadas, apesar de serem um legado, provocaram congestionamentos que chegam a 4h30 em alguns trechos. Isso reduz a produtividade e faz com que as pessoas busquem outros meios de transporte, como o carro, o metrô e o trem. Da mesma forma, o modelo de integração, com bilhete único, que passou a durar 3 horas nos municípios e 3h30 no estado, diminuiu a receita das empresas com a venda de menos tíquetes. A integração é boa para a população, mas não pode ser feita às custas das operadoras”, defende o presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Lélis Teixeira.
Como sair da crise - Para resolver os gargalos na equação “necessidade de investimentos versus falta de recursos”, duas propostas de emenda à Constituição tramitam na Câmara dos Deputados. Ambas sugerem a criação de fontes para esses recursos por meio da CIDE-Combustíveis (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de gasolina e outros combustíveis), mas com fins diferentes.
De autoria do deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), a PEC 307/13 propõe a descentralização do imposto. Assim, a destinação seria de 20% da arrecadação da CIDE-Combustíveis para os estados, e 70% para os municípios, para investimentos e subsídios às tarifas do transporte, barateando, assim, as passagens. Segundo justificativa do parlamentar, as políticas públicas para o transporte são inadiáveis, visto que é uma demanda da população e um problema que tomou proporções nacionais.
Já o texto da PEC 179/07, do deputado federal e atual secretário municipal de Transportes de São Paulo, Jilmar Tatto (PT-SP), sugere mudanças na CIDE-Combustíveis, obrigando a União a destinar no mínimo 10% dos recursos arrecadados com ao subsídio de programas de transporte coletivo urbano para a população de baixa renda em cidades com mais de 50 mil habitantes.
Outra proposta defendida por Tatto é a criação de um novo imposto também para subsidiar o transporte coletivo. A ideia é permitir a criação de uma Cide municipal com repasse para o transporte público de parte da arrecadação do consumo de gasolina pelo transporte individual. Na prática, a cada vez que um motorista de veículo particular abastecer, parte do valor pago pelo combustível seria destinado aos custos de operação dos ônibus nas cidades.
De acordo com o secretário, a proposta justifica-se pela possibilidade de uma arrecadação maior para o setor. Argumento comprovado por pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) na capital paulista. Segundo o estudo, se houver aumento de 10 centavos na tarifa de ônibus, a arrecadação é de R$ 150 milhões por ano. Por outro lado, se houver aumento dos mesmos 10 centavos no valor da gasolina, a quantia recolhida é de R$ 600 milhões por ano, quatro vezes mais.
ESTUDO DA FGV: Se houver aumento de 10 centavos na tarifa de ônibus, a arrecadação é de R$ 150 milhões por ano. Por outro lado, se houver aumento dos mesmos 10 centavos no valor da gasolina, a quantia recolhida é de R$ 600 milhões por ano, quatro vezes mais.
“O automóvel ocupa, hoje, 75% do espaço viário nos grandes centros urbanos, e transporta apenas 20% da população. Já o ônibus ocupa pouco mais de 9% e carrega 75% das pessoas. A taxação dos veículos particulares por meio da gasolina democratiza, portanto, o uso do espaço público. É o modal individual financiando o público, o que beneficia a todos. Nossa expectativa é de que a proposta seja aprovada. A partir daí, cada município fará uma lei específica regulamentando a matéria”, explica Tatto.
Para ele, a medida, somada ao incentivo a financiamentos e recursos do Programa de Aceleração do Crescimento para projetos de infraestrutura, contribuiria para o tão sonhado transporte de primeiro mundo. E Tatto diz com conhecimento de causa. Com uma das menores quedas na demanda de passageiros do Brasil – cerca de 1% –, São Paulo passa por melhorias em pontos essenciais para uma mobilidade urbana sustentável, como BRT, faixas exclusivas, ciclovias e integração entre os modais de transporte. A capital paulista conta expressivos recursos da prefeitura para a subvenção dos custos.
O presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, apoia a proposta e reforça a necessidade de investimentos realizados em cidades como São Paulo. “Ainda não fizemos os investimentos adequados em infraestrutura. Grandes obras estão paralisadas por falta de recursos. Hoje em dia, aumenta-se o preço da passagem apenas para que empresas possam cobrir prejuízos. Precisamos dar uma resposta, melhorando a qualidade do transporte sem que a população e as empresas tenham que sofrer por isso”, finaliza.