Criticado por ter mandado
para a casa mais de 100 presos, juiz de Roraima culpa o estado pelo
fortalecimento das facções e define as prisões como depósito de gente.
O juiz substituto da Vara
de Execução Penal de Roraima, Marcelo Lima de Oliveira.
Sem escolha. Assim o juiz
substituto da Vara de Execução Penal de Roraima, Marcelo Lima de Oliveira,
definiu a decisão de caráter emergencial que colocou 161 detentos do regime
semiaberto em prisão domiciliar depois que um informe interno do Centro de Progressão
Penitenciária dava conta que o local seria palco de vingança do PCC contra o
Comando Vermelho.
O estado é comandado 90% pelo PCC e apenas 10% pelo CV,
segundo o magistrado, que ressalta que a primeira matança entre as duas facções
ocorreu e outubro. Na época, o BOPE (Batalhão de Operações Especiais da
Polícia) divulgou o número de 25 mortos.
Oliveira foi criticado por
muita gente e usou as redes sociais na última quarta-feira (11/1), segundo ele,
para explicar à sociedade e tranquilizar familiares e amigos de que não tinha
ficado maluco. Ele se queixa de que a maior parte das críticas – muitas
ofensivas, inclusive – veio de pessoas que desconhecem o sistema.
“Não havia riscos
adicionais além dos que já existiam. Muito pelo contrário. Não havia como fazer
diferente. A decisão foi tomada porque havia um informe da inteligência da
polícia de que a próxima rebelião, ou algo do gênero, seria justamente naquele
centro, que é um local onde há vários problemas de segurança há algum tempo”,
pondera Oliveira.
Vale lembrar que, cinco
dias depois da chacina em Manaus, a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em
Boa Vista, foi palco de vingança do PCC, que deixou mais de 30 mortos.
Aprovado em primeiro lugar
no concurso do Tribunal de Justiça de Roraima, Marcelo de Oliveira foi
empossado no dia 19 de agosto do ano passado. Desde então, além de arbitrar
progressões de pena e presidir audiências de custódia, o juiz fiscaliza
unidades prisionais de todo o estado que, para ele, estão em estado de
abandono.
Em entrevista à Ponte
Jornalismo, ele critica a aplicação da lei de execução penal, atribui o
crescimento das facções à ausência do estado e faz um relato emocionante sobre
uma mãe que, sem escolha, entrou para o tráfico para proteger o filho. A decisão gerou polêmica a
ponto de o senhor manifestar publicamente o descontentamento com as críticas.
Quais foram os elementos que levaram o senhor a decidir pela soltura em caráter
emergencial daqueles presos?
A decisão foi tomada
porque havia um informe da inteligência e um outro, paralelo, da direção da
unidade prisional, de que a próxima rebelião, o próximo massacre, a próxima
vingança do PCC, ou algo do gênero, seria justamente naquele Centro de
Progressão Penitenciária, que carrega vários problemas de segurança há algum
tempo.
Essa era a situação. Não havia maiores elementos. O diretor da unidade
estava na minha frente com um documento oficial dizendo que não havia
segurança, que não tinha agente penitenciário suficiente, especialmente na
entrada e na saída.
Aliás, isso eu faço questão de deixar claro: todos os
liberados são presos que estão diariamente na sociedade, das 6 até 20 horas.
Por questão de estudo ou trabalho, muitos deles podem ficar até meia noite na
rua, quando então voltam para dormir no Centro de Progressão. São presos
inseridos socialmente e, no aspecto legal, não oferecem risco para sociedade.
Naquele momento, o risco maior era para eles.
Imagine você se eles
permanecessem lá dentro e houvesse uma chacina? E aí fica aquela escolha: o
diretor está dizendo que não tem segurança, um informe diz que o próximo palco
de homicídios será lá, você faz o quê? Sobre o meu desabafo, eu acredito que a
Justiça precisa prestar contas à sociedade. Eu fiz a postagem na rede social
por causa disso. Eu fui muito xingado, principalmente por pessoas que não leram
a decisão, que desconhecem o sistema.
Além disso, a forma como a notícia foi
publicada (“Juiz esvazia presídio”) me deixou indignado. De certa forma, quis
tranquilizar as pessoas para não ficarem mais amedrontadas do que já estão e
entenderem o motivo da minha decisão. Não havia riscos adicionais além dos que
já existiam. Muito pelo contrário. Não havia como fazer diferente.
Que tipo de problema de
segurança constava no documento?
Desde que assumi o cargo
de juiz substituto na Vara de Execução [Penal], já tenho quatro relatos, três
deles muito recentes, sobre jurados de morte, vingança, essas coisas. Logo que
entrei, tive que decidir favoravelmente pela prisão domiciliar de um preso do
Centro de Progressão Penitenciária, que tinha sido alvejado dentro da própria
unidade. Ele era do semiaberto, estava retornando à unidade e aí tentaram
matá-lo ainda do lado de fora. Ele entrou correndo dentro do presídio e lá foi
alvejado. Além disso, tenho que lidar semanalmente com relatos e mais relatos
de familiares que me procuram para pedir providências de segurança. Em agosto,
se não me falha a memória, entre os dias 21 e 23, houve homicídios de internos
do semiaberto, justamente na saída ou na entrada, que são momentos vulneráveis.
E como você ficou sabendo
do que estava acontecendo?
Eu estava em casa quando
fui comunicado. Houve, a princípio, uma dúvida se o caso seria competência da
Vara de Execução Penal ou do juiz plantonista. Comuniquei a juíza de plantão e,
juntos, para evitar eventuais contestações, decidimos assinar a decisão que foi
pensada, meditada, e foi o melhor a ser feito naquela situação.
É como eu já
disse: imagine se a gente não toma uma atitude e no dia seguinte tem uma
rebelião, mais uma situação sangrenta? A culpa seria de quem? Do juiz, que foi
informado e não tomou providências. Por outro lado, imagina em um plantão
judicial, em um sábado a tarde, você ter que determinar que coloquem policiais,
rondas ostensivas, invadindo a esfera do Poder Executivo. De onde esses homens
seriam tirados? Das ruas. Logo iriam começar a dizer: “nossa, estão tirando a
PM que cuida do cidadão de bem para cuidar de bandido, no presídio?”. Essa é a
mentalidade, infelizmente. De toda forma seríamos criticados. Não tínhamos escolha. Eu vi a forma com que conseguimos lidar com a
situação como uma espécie de saída temporária, que, vale ressaltar, todos os
contemplados tiveram no final do ano passado. E vale também destacar que não
houve registro de crime dessas pessoas no período e todos voltaram na data
certa.
Podemos dizer que essa é
uma característica de detidos do semiaberto, ou seja, são mais controláveis?
Os presos do CPP são
presos que costumo dizer que já estão na porta de saída. Eles querem cumprir a
pena logo. Não havia riscos adicionais. Hoje mesmo, com as fiscalizações que
estão acontecendo, nós tivemos apenas um caso de um preso que foi localizado
fora do horário em casa. Esse detento foi reconduzido, está em sanção
disciplinar e deverá sofrer alteração de regime. Não é vantajoso para quem está
no semiaberto descumprir a regra. Não há notícia, desde que assumi, de crimes
praticados por eles. Aliás, uma ponderação importante é que eles poderiam
cometer crimes quando estão na rua, por exemplo, exercendo um direito de quem é
do semiaberto de trabalhar durante o dia ou mesmo estudar. Portanto, a decisão
não havia como ser outra. Ela foi reavaliada. A Secretaria de Justiça e
Cidadania apresentou nesta semana um plano de reforço da segurança para que
esses 161 que foram liberados retornem e cumpram adequadamente a pena.
Depois do massacre em
Manaus, o juiz Luis Carlos Valois disse que no Brasil a Lei de Execução Penal
não funciona. O senhor concorda?
Quando eu estudava para
concurso, achava o texto da Lei de Execução Penal muito bonito. É uma lei que,
se cumprida, permitiria que esses presos, independentemente do crime, fossem
ressocializados. A lei prevê direitos, deveres, obrigações, assistência ao preso,
assistência e acompanhamento ao egresso, que é quando o preso sai da unidade.
Na teoria, há vários dispositivos que fazem com que aquele que cometeu o crime
seja, na prática, ressocializado. Mas é uma lei que não tem sido aplicada como
deveria e isso não é exclusividade do estado de Roraima. A negligência é geral.
Mas como é a situação em
Roraima?
O que tenho visto nas
unidades prisionais que eu inspeciono é que não há assistência ao preso. Os
presídios são hoje depósitos de gente, de ser humano. Algumas unidades são
melhores que outras, mas em comum é isso: só servem para depositar gente. Nada
além.
Não há assistência à saúde do interno, não há assistência social, nada.
Eu disse recentemente: o Estado não tem conseguido nem fazer prédio, quanto mais
oferecer médico, psiquiatra.
Há vários problemas ligados a drogas, por exemplo,
que precisariam de um acompanhamento psiquiátrico, um tratamento mesmo. O
consumo e a venda de drogas acontecem dentro das unidades. Com relação aos
crimes, o que mais tenho visto nas audiências de custódia são tráfico de drogas
e violência doméstica. O cenário é esse.
Não há apoio nenhum aos presos. E
nesse ponto da conversa é importante dizer que não é apoio para ser bonzinho, é
para querer que eles se ressocializem. Os funcionários que estão na lida,
professores, gestores, agentes, fazem esforços maravilhosos. Mas ainda é
insuficiente.
O que eu vejo é que as atividades que acontecem e dão resultado
têm sido feitas com esforços individuais, ou seja, não como uma política pública,
um trabalho coletivo. A questão da assistência ao preso egresso, por exemplo, é
inexistente.
No relato que o senhor
escreveu no Facebook, chegou a mencionar que passou um aniversário em uma
unidade prisional. Como foi isso?
Foi uma tentativa de mostrar
que não caí de paraquedas, que eu vivo o dia a dia da Execução Penal. Desde que
assumi o cargo, tenho feito regularmente as inspeções. No dia do meu
aniversário, eu estava dentro da Cadeia Pública, por exemplo.
Eu fui acompanhar
o presidente do TJ [Tribunal de Justiça], porque ele tinha que fazer um
relatório para a Ministra Carmen Lucia. No dia 14 de outubro, fizemos a visita
na Penitenciária Agrícola. O prédio é ruim como ainda é hoje, continua um
cenário de destruição, restos de construção…
A sensação é de estar em um lugar
onde há bombardeio, sabe? Era uma sexta-feira e a impressão é de que tudo se
encaminhava para um mínimo de organização. No domingo, dia 16, me surpreendi
com aquela chacina de 10 ou 12 mortos, não lembro (os números oficiais dão conta
de 25 mortes).
Como são essas visitas
para inspeções que o senhor faz? Dá para perceber que o local é uma bomba
relógio prestes a explodir?
Pelo simples olhar, não dá
para saber se haverá mortes, rebelião. Como eu disse, as penitenciárias têm
estado de abandono, mas há uma aparência de organização.
Quando o juiz vai, os
presos estão dentro das celas, estão trancados, há um mínimo de limpeza. Mas é
claro que você vê por exemplo, a ausência de saneamento, esgoto a céu aberto.
Mas não posso dizer que dá para cravar que haverá brutalidade ou chacina como
houve.
Há sempre o informe de que vai haver e que a cadeia vai virar, que é o
termo usado para rebeliões, mas não aparenta visualmente. Mas a gente verifica,
sim, falhas de segurança, porque o prédio é muito velho, você observa o
abandono. Hoje, como conheço um pouco mais, quando há aparência de normalidade,
é um sinal de alerta.
E sobre a Penitenciária
Agrícola de Monte Cristo, o que tem a dizer?
No dia 29 de dezembro, eu
estive na PAMC. Entrei em todas as alas, conversei com muitos detentos e a mim
pareceu que a penitenciária estava muito mais organizada do que na última
visita, um mês antes. Havia a tal aparente calmaria. Aí fomos surpreendidos no
dia 6 com o massacre que houve lá.
O juiz Valois, de Manaus,
disse que não legitima as facções – PCC, CV, FDN. Como vê esse contexto?
Também por ter mais
experiência que eu, penso que ele está certo. É fato que há um glamour em ser
de facção criminosa. Nessa quinta-feira, olha que curioso, em uma reunião com a
Secretaria de Justiça e Cidadania, foi dito isso, inclusive.
Antigamente, era
vergonha dizer que fazia parte de facção. Hoje em dia dá orgulho. As meninas
pintam o cabelo de vermelho, fazem a tatuagem de arlequina para mostrar que
fazem parte do PCC, postam em redes sociais para demonstrar fidelidade.
Essas
facções estão substituindo um papel que deveria ser do estado, da família, da
própria sociedade. E esse papel é o de acolher as pessoas que estão excluídas
socialmente. A gente não deve glamorizar.
Não devemos tornar além do que elas
são. É engraçado quando você olha algumas manchetes de jornais, sempre
valorizando, glamorizando, e quando se fala no estado, na atividade policial,
é em tom de crítica.
A mensagem é de que o crime é organizado, o Estado não.
Não devemos dar relevância a facção criminosa, mas sim entender as origens e
diminuir sua influência e até eliminar a sua existência, se é que isso é
possível.
Acha que é possível?
Se o Estado se organizar,
se houver vontade política e se a sociedade assim desejar, é possível modificar
o sistema prisional brasileiro e reduzir a influência das facções criminosas.
Elas nunca deixarão de existir, porque o crime existe desde sempre. Mas a gente
pode tornar a sociedade mais segura, mais próspera e dar o relevo não apenas às
questões de segurança pública, mas, principalmente, à questão social.
E qual o caminho prático
disso?
Não tenho dúvidas que a
questão social é um grande vetor da insegurança pública que vivemos. É preciso
haver a melhoria em unidades prisionais, é preciso haver a melhoria da
legislação, do Judiciário, do MP [Ministério Público], de todos que trabalham
nessa seara.
Mas é preciso também uma atenção social para que jovens não sejam
recrutados pelo crime e não tenham a ideia de que só podem ser acolhidos no
meio criminoso. Não podemos ter como premissa que bandido, preso, quem comete
crime, não tem mais jeito.
Alguns realmente não têm jeito. Mas creio, sim, que
a grande maioria pode se reabilitar. Tenho visto alguns exemplos disso. Muitos
que começaram no regime fechado, com penas altíssimas, não têm tentado fuga,
têm tentado se manter apartados de facções criminosas, têm progredido de regime
e encontrado um novo caminho.
Agora, com relação às facções criminosas, é
importante o Estado retomar o controle dos presídios. Hoje em dia, até por
questões de segurança, o preso diz que simpatiza com determinada unidade prisional,
porque, caso contrário, infelizmente, ele vai sofrer as consequências,
apanhando ou até mesmo sendo morto, com a família aqui do lado de fora sofrendo
uma penalidade adicional. A pena é cumprida pelo preso e por toda a família
dele.
Como assim?
No dia 29 de dezembro do
ano passado, estive na Unidade Prisional Feminina de Boa Vista e me assustei
com a quantidade de mulheres com mais de 60 ou 50 anos de idade presas. Uma das
histórias me marcou muito.
É uma mãe que foi visitar o filho preso por tráfico
de drogas e, quando chegou, os líderes do tráfico disseram para ela: “Ou você
paga o que ele perdeu ao ser preso em flagrante pela polícia, ou a gente vai
matar ele”. Ela optou por não fazer o tráfico.
Deram uma surra nele, a ponto de
quase morrer. Passou pelo hospital e depois retornou à cadeia. Na próxima
visita, ela viu o filho em frangalhos e os líderes disseram: “Senhora, da
próxima vez ele morre”.
Por amor, enfim, ela acabou optando por traficar. Uma
vez, duas… Uma hora a polícia pegou e hoje ela está presa. Isso é o relato
social de que, hoje, infelizmente, o Estado está ausente dentro das unidades
prisionais.
É o cenário de desestrutura familiar que mais se aproxima da
realidade, porque foi o filho, depois a mãe, a próxima será a irmã e assim vai.
As facções criminosas estão se encaminhando para dominar as unidades
prisionais.
Para além disso, o estado de Roraima precisa de mais unidades. O
secretário de segurança me disse que a construção de dois novos presídios está
avançando. Numericamente, dará uma folga, mas é preciso melhorar a gestão,
remunerar adequadamente os agentes penitenciários, melhorar o judiciário,
oferecer condições dignas, enfim, tratar a lei de execução penal com seriedade.
Porque as pessoas esquecem que esse sujeito que foi abandonado, que foi jogado
na unidade prisional, vai retornar ao meio social.
E aí?
E aí? Se não estiver
ressocializado, novos crimes virão. É um ciclo.
Link original: http://ponte.cartacapital.com.br/nao-tinha-seguranca-nao-tinha-agente-suficiente-e-ia-ter-um-banho-de-sangue/
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