Apesar da redução substancial da dívida líquida, na última década a dívida bruta manteve-se relativamente estabilizada e passou a crescer a partir de 2013. Diferentemente do senso-comum, essa dinâmica da dívida bruta não é explicada pela "gastança do governo" ou o resultado primário, mas principalmente pela acumulação de ativos por parte do Estado como a acumulação de reservas cambiais e de créditos junto ao BNDES.
Essa estratégia possui méritos como, por exemplo, a redução da vulnerabilidade externa do setor público. Da mesma forma a política de expansão dos empréstimos doBNDES, em 2009, foi importante para a ação contracíclica que assegurou a recuperação rápida da economia brasileira na maior crise da história do capitalismo mundial desde a década de 1930. No entanto, não devemos negligenciar seus elevados custos.
A estratégia de acumulação simultânea de ativos e passivos, com grande diferencial de rentabilidade entre eles, explica boa parte da elevada conta de juros. Em 2015, domando-se os custos de oportunidade da manutenção das reservas internacionais e dos créditos ao BNDES com o resultado das operações de swaps cambiais, chegamos a 4,9% do PIB.
Em suma, se o objetivo for equacionar a dívida bruta é preciso desatar o nó da gestão macroeconômica, reduzir substancialmente o gasto com juros e ponderar o custo da estratégia de acumulação de ativos. A ideia que se disseminou no Brasil de que ao governo só compete controlar os gastos primários, desconsiderando os custos e benefícios fiscais das demais políticas macroeconômicas, deve ser revista e amplamente debatida.
Mito da gastança federal
O diagnóstico convencional da crise pela qual passa o país se traduz simplificadamente na seguinte narrativa: os governos do PT expandiram demais os gastos públicos, encobriram o déficit público crescente por meio da chamada "contabilidade criativa" e das "pedaladas fiscais" e esse tipo de política fiscal expansionista e nada transparente destruiu a confiança do mercado e mergulhou o paisana estagflação.
Contudo, a análise dos dados mostra que, de fato, a despesa do governo vem crescendo a um ritmo elevado e estável há tempos. As taxas médias de crescimento real do gasto do governo federal dos últimos quatro governos foram: FHC II (3,9%), Lula I (5,2%),Lula II (5,5%) e Dilma I (3,8%).
O principal fator por detrás do crescimento das despesas na esfera federal não são os gastos com pessoal, como muitos acusam. Estes crescem sistematicamente abaixo do PIB e tiveram sua menor taxa de expansão real justamente no governo Dilma I (-0,3%), ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos estados e municípios, onde o gasto com salários e aposentadorias de servidores tem crescido a 5,5% ao ano, independentemente da coloração partidária do governante.
O motor do gasto federal tem sido os benefícios sociais (aposentadorias e pensões doINSS, benefícios a idosos e deficientes, seguro-desemprego, bolsa família, etc), que hoje consomem metade do gasto da União (mais de R$ 500 bilhões em 2015) e crescem a taxas sistematicamente superiores ao PIB pelo menos desde 1999, por influência principal de fatores demográficos, da justa formalização e dos direitos consagrados na Constituição e, adicionalmente, pela política de valorização do salário mínimo.
Porém, uma visão mais acurada dos gastos sociais mostra que tampouco nesta área houve expansão desenfreada, sobretudo frente às demandas sociais brasileiras, e que a política de valorização do salário mínimo contribuiu para este cenário, mas com impactos sobre a redução da desigualdade relevantes. Certamente é possível discutir excessos e tornar o gasto mais eficiente, mas as possibilidades de fontes de financiamento discutidas neste documento evidenciam que este é um debate que deve envolver toda a sociedade brasileira.
Vale notar que, a despeito de gastos elevados, o governo conseguiu manter resultados fiscais positivos na última década e meia pelo aumento da carga tributária (1999-2005) ou pelo crescimento mais acelerado do PIB (2006-2011). Nos governos Lula, enquanto o país crescia, não havia desajuste fiscal apesar do crescimento do gasto público. Mas a partir de 2012, com a queda do crescimento econômico e com as desonerações tributárias, houve uma piora dos resultados fiscais.
Reforma tributária, já!
A estrutura tributária brasileira é extremamente perversa com os mais pobres e aclasse média e benevolente com os mais ricos. Esse sistema singular é reflexo tanto do federalismo brasileiro e da dualidade tributária (impostos e contribuições sobrepostos), quanto de algumas recomendações de política que o mainstream econômico propagou nas décadas de 80 e 90 e que foram incorporadas de forma bastante acrítica ou peculiar pelo Brasil.
A agenda de reformas da tributação sobre a renda e o patrimônio, que envolve um forte conflito distributivo, permaneceu totalmente embargada nos últimos 20 anos, não tendo o governo federal apresentado qualquer proposta de reforma mais substancial que visasse ampliar a progressividade ou mesmo corrigir as graves distorções ensejadas pela atual legislação.
O Brasil foi um dos primeiros países e até hoje um dos poucos que isentou e continua isentando de imposto de renda os dividendos distribuídos a acionistas, tal como a pequena Estônia.
De acordo com os dados das declarações de imposto de renda, as 70 mil pessoas mais ricas do Brasil, representando meio milésimo da população adulta, concentram 8,2% do total da renda das famílias, índice este que não encontra paralelo entre as economias que dispõem de informações semelhantes. Esse mesmo seleto grupo pagou apenas 6,7% de imposto de renda sobre esse montante.
Além de injusta, essa assimetria entre o tratamento tributário dispensado a dividendos e salários tem sido responsável por um fenômeno conhecido por "pejotização", que é a constituição de empresas por profissionais liberais, artistas e atletas com o objetivo de pagar menos impostos do que como autônomos ou assalariados.
Nesse contexto, a proposta de se aumentar alíquotas do imposto de renda das pessoas físicas sem revogar a isenção de dividendos não proporciona uma redistribuição de renda tão efetiva uma vez que as alíquotas progressivas da tabela do Imposto de Renda (IRPF) só atingem os "rendimentos tributáveis", o que não inclui atualmente adistribuição de lucros e dividendos que são as principais fontes de renda dos mais ricos. Então, qualquer proposta de reforma do imposto de renda que não passe pela tributação dos dividendos não será tão efetiva nos objetivos de contribuir com uma maior justiça fiscal e também gerar receitas extras para o governo.
Na atual conjuntura de crise, é pouco razoável crer na possibilidade de um equilíbrio fiscal com baixo crescimento. Isso implica que, no curto prazo, deveríamos no mínimo assegurar espaço fiscal para o investimento público e para gastos sociais de elevado impacto sobre o bem-estar das camadas mais vulneráveis da população.
Uma reforma tributária, que combine eficiência e equidade poderia atuar incentivando o crescimento econômico de longo prazo ao reduzir a tributação do lucro e da produção das empresas, ao mesmo tempo em que concentra o ajuste fiscal de curto prazo sobre uma pequena parcela da poupança dos mais ricos, não diretamente relacionada ao investimento, e, por conseguinte, vinculada a um maior nível de emprego e produto. Assim, ganha-se tempo para aprimorar outras propostas de reformas estruturais das despesas, debatê-las com a sociedade e pactuá-las democraticamente.
Leia a íntegra na Versão digital ou na versão PDF: Austeridade e Retrocesso Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil. http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/Austeridade-e-Retrocesso.pdf
Fonte: IHU On Line/Brasil Debate.Link original desta materia: http://port.pravda.ru/cplp/brasil/13-10-2016/41918-documento_pec-0/
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