terça-feira, 29 de outubro de 2013

Sociologia - Livro A Marcha para o Oeste, narra a saga dos Irmãos Villas Bôas.



Foto do Livro.

Este é um dos melhores livros publicados nos últimos anos. Trata-se de um registro fiel ou quase das peripécias dos irmãos Villas Bôas durante o tempo em que realizaram trabalho de campo para a Fundação Brasil Central. Uma narrativa épica que revela em detalhes como uma das regiões mais importantes do Brasil na atualidade foi desbravada.

Até a página 166 os principais personagens da narrativa são os sertanejos que, superando todas as dificuldades fazem a expedição avançar. Eles trabalharam com obstinação e agindo de maneira surpreendentemente adequada às vicissitudes impostas pela natureza, pelos índios xavantes e até mesmo pela incompetência administrativa que deixou a vanguarda sem comida várias vezes.

O outro personagem da narrativa nesta primeira parte do livro é a natureza, que forneceu não só obstáculos (rios, alagados, chuvaradas, etc...) e insetos nocivos e pestilentos, mas também auxílio indispensável (animais, frutas, peixes, aves, mel e material para a construção dos abrigos temporários).

A expressão natural dos sertanejos que participaram da expedição foi registrada com riqueza de detalhes. As cantorias, ladainhas, casos, crendices, repentes e outras modas improvisadas de viola foram transcritas pelos autores. As histórias verdadeiras ou quase, contadas pelos peões que ajudaram a levar adiante a expedição  Roncador-Xingu, foram reproduzidas com fidelidade.

O livro é um verdadeiro manancial de informações sobre a terra incógnita e sobre o homem comum brasileiro que fez o Brasil avançar para as profundezas do nosso território. Há algumas referências literárias (Monteiro Lobato, Rui Barbosa) e científicas (Humboldt), mas o que predomina na obra são as citações que dizem respeito à cultura dos sertanejos da expedição. Nesta primeira parte do livro os índios somente aparecem como elementos ocultos, que tentam desencorajar a expedição infernizando as noites dos expedicionários ou tentando interrompê-la colocando fogo na mata, nas picadas ou nos acampamentos.

Até a página 166 o livro pode ser comparado a obra “Os Sertões”. Mas há uma diferença fundamental entre estes dois livros. Ao contrário de Euclides da Cunha, os irmãos Villas Bôas conviveram intensamente com os sertanejos e registraram sua peculiar forma de expressão. O autor de “Os Sertões” registrou os fatos da guerra de Canudos pela lente dos seus preconceitos, dos quais foi se libertando lentamente à medida que sua narrativa avançava.

A segunda parte do livro, que vai da página 167 até o final tem por objeto a natureza indômita e exuberante do Brasil Central, bem como os índios e seus costumes. Nesta segunda parte da obra, os Villas Bôas registraram os primeiros contatos que fizeram com várias tribos que habitavam as regiões percorridas pela expedição Roncador Xingu. Algumas destas tribos eram totalmente desconhecidas dos brasileiros, outras eram conhecidas apenas em razão de contatos eventuais e violentos.

A obra faz um inventario mais ou menos detalhado dos usos e costumes de várias etnias indígenas contatadas pela expedição. As línguas utilizadas por várias destas tribos eram então desconhecidas ou pouco estudadas, fato que dificultou bastante a comunicação entre a expedição e os nativos. Durante estes contatos, os Villas Bôas recolheram uma quantidade imensa de artefatos que foram levados ao Museu do Índio no Rio de Janeiro (o mesmo que um certo governador tentou destruir recentemente).

O relacionamento entre os membros da expedição e os indígenas foi, na maioria das vezes, muito pacífico de parte a parte, mas a expedição chegou a correr riscos em algumas oportunidades. É nesta parte do livro que foram registradas as animosidades que existiam entre tribos rivais e o trabalho da expedição para amenizá-las. Também é nesta parte do livro que foram registrados, do ponto de vista dos Villas Bôas, o trabalho dos cientistas brasileiros e dos jornalistas que acompanharam a expedição Roncador-Xingu com o intuito de estudar os índios e seu habitat.

Lamentavelmente a expedição acarretou uma imensa mortandade de animais silvestres, muitos dos quais tiveram que ser abatidos para servir de alimento. O Brasil Central foi desbravado à custa do sangue de uma infinidade de veados, caititus, queixadas, tatus, pacas, macacos, capivaras e onças. A quantidade de onças que foram mortas pelos Villas Bôas e pelos seus auxiliares é assustadora. Muitas delas, por falta de outro alimento, foram comidas apesar da carne de onça não ser muito saborosa.

Em duas oportunidades o livro narra com requinte de detalhes estes encontros que resultaram nas mortes das onças, numa delas os autores lamentam o fato como que adotando o ponto de vista do infeliz felino. Também é bastante poético o caso do burro de tropa que virou comida de onça porque entrou pelo mato adentro correndo ao encontro do animal feroz que rugia num grotão próximo de uma pista de pouso.

O livro é uma mina de ouro para quem estiver interessado na história da aviação no  Brasil. A obra narra as dificuldades encontradas pelos Villas Bôas para localizar e escolher locais adequados para os campos de aviação que permitiriam à expedição ser abastecida pelos aviões. Registra de maneira precisa o trabalhoso processo de desmatamento e preparação das pistas, bem como a abertura de novas rotas aéreas. Os acidentes mais ou menos graves com as aeronaves utilizadas pela Fundação Brasil Central também foram narrados.

A história do jornalismo no Brasil também entrou nesta obra de diversas formas. A expedição Roncador-Xingu foi acompanhada por jornalistas em algumas oportunidades. Durante muito tempo os Villas Bôas foram as únicas fontes jornalísticas da expedição, fornecendo aos jornalistas pelo rádio informações sobre a mesma para que as novidades fossem contadas ao 'respeitável público' brasileiro. A obra também reproduz alguns textos jornalísticos que os próprios Villas Bôas escreveram e que foram publicados em jornais na época.

O livro narra muitas coisas marcantes ocorridas durante os contatos que os Villas Bôas travaram com os índios. Citarei aqui apenas três. 

O primeiro diz respeito à alegria e surpresa dos índios, que tinham uma dificuldade imensa para fazer fogo, ao ver um membro da expedição acender uma fogueira usando uma caixa de fósforos. O que para nós era e ainda é algo bastante banal se transforma em algo espetacular para quem nunca havia tido contato com aquilo. 

A segunda foi a forma como os índios reagiram a uma eclipse do sol: os homens atirando flechas acesas para o céu tentando acendê-lo novamente, as mulheres e crianças se escondendo chorosas daquele evento pouco compreendido pelos indígenas. 

O terceiro refere-se ao caráter humanitário da economia indígena: "... moitará é uma prática importante da cultura xinguana. É um comércio todo ele na base da troca. E o valor dos objetos negociados é calculado pelo tempo de trabalho despendido em cada um. Cada tribo tem sua especialização em determinada atividade." (p. 332)

Um pouco mais adiante, depois de terem detalhado o que cada tribo fabricava e comercializava no moitará, os Villas Bôas relatam um impressionante exemplo de "economia solidária" e de civilização. O exemplo é tão bom, belo e justo, que deveria servir de exemplo para nós, que nos dizemos civilizados e que no entanto praticamos variedades cada vez mais irracionais e destrutivas de um capitalismo descrito pela esquerda como "selvagem" (muito embora a expressão "capitalismo selvagem" seja uma contradição em termos se levarmos em conta o exemplo de "economia solidária" e altamente civilizada dada pelos selvagens). Relatam os Villas Boas que: "Ontem assistimos aqui no pátio do posto a uma troca simbólica entre duas aldeias - kamaiurá e trumai.

Andavam os trumai numa série crise de alimentação. Nas suas roças, ainda novas, não havia uma só raiz de mandioca.

Na troca-comércio os dois grupos se colocaram um em frente ao outro, e entre eles ficou um terreirinho de um a dois metros quadrados, previamente varrido. 

O chefe trumai, nessa ocasião, expôs aos presentes a situação de sua aldeia com respeito à alimentação. Dito isto, colocou no centro do terreirinho, à guisa de troca, uma bolinha de massa de pequi (tamanho de um grão de milho) e pediu em troca massa de mandioca. 

Tamacu, o cacique kamaiurá, incontinente a recolheu, dela tirou uma partícula minúscula e a levou à boca, oferecendo-a em seguida aos de sua aldeia. Diversos chefes de casa avançaram e imitaram o cacique. Momentos depois, as mulheres daqueles que provaram do pequi colocaram no mesmo lugar - no terreirinho - imensas cestas de pães secos de mandioca. Algumas centenas de quilos.

Sem menos esperar, assistimos a uma belíssima demonstração de solidariedade, e há que levar em conta ainda que esses índios durante anos foram figadais inimigos." (A MARCHA PARA O OESTE, Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas, Companhia das Letras, 2012, p. 333/334).

Citei este episódio com detalhes porque ele nos faz pensar. Pouco desta civilidade e solidariedade indígenas são encontradas hoje em dia no Brasil. Sob o comando dos governos Lula/Dilma o Estado brasileiro tentou recriar e modernizar experiências como as relatadas pelos irmãos Villas Bôas com os programas Bolsa Família (renda para quem não a tem) e o Prouni (educação universitária pública para quem não a teria). Os dois programas,  entretanto, tem sofrido intensa oposição de alguns setores que se consideram "mais civilizados" da sociedade brasileira. 

As palavras "civilidade" e "civilização", como podemos ver são bastante ambíguas. Ambas podem ser encontradas entre indígenas ágrafos e muito pobres quando da expedição Roncador-Xingu (trumai e kamaiurá). Entre as camadas mais cultas e ricas da sociedade brasileira ainda hoje predominam a mais abjeta barbárie. Falta-lhes a humildade para aprender com os indígenas brasileiros a capacidade de respeitar os outros seres humanos, inclusive aqueles que são ou que foram considerados inimigos.

A MARCHA PARA O OESTE é um livro maravilhoso, mas tem um defeito muito grande. Ele não tem um índice detalhado que permita ao leitor ir direto às páginas em que pessoas, coisas, animais, acidentes de terreno, episódios, etc... foram referidos pelos autores. Em se tratando de um livro volumoso e que cobre uma gama imensa de assuntos um bom índice seria indispensável, especialmente para quem tiver que utilizá-lo para pesquisar assuntos específicos. Esperamos que para a próxima edição esta falha seja corrigida.

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